quarta-feira, 28 de julho de 2010

Orfeu às avessas

Sempre achei por demais curiosa a construção dos deuses pelos antigos, particularmente os gregos. Por um lado poderosos e imponentes em sua elevada posição, por outro, contaminados com uma humanidade que os fragiliza, vitimiza e muitas vezes os expõe ao ridículo. Senhores dos destinos de homens e mulheres, não conseguem lidar bem com suas próprias idiossincrasias e limitações, condição essa imposta como uma espécie de compensação mitológica. Submetidos a uma hierarquia familiar, são movidos por um insaciável desejo de vingança, que recai sobre seus divinos pares e também acaba sobrando, logicamente, para os pobres mortais. Os deuses gregos são sádicos, invejosos e perversos, características muito mais evidentes do que a suposta nobreza heróica de seus postos.

Curiosa é também a perpetuação desses mitos como temas artísticos até os tempos mais recentes. Tomemos o mito de Orfeu como exemplo. Filho mortal de Apolo, Orfeu representa o dom da música. Com sua voz e sua lira é capaz de deleitar e convencer quem quer que seja, desde pássaros até monstros. Eis que outro filho de Apolo, Aristeu, resolve tomar-lhe a amada Eurídice à força. Fugindo das investidas de Aristeu ela é mortalmente picada por uma cobra, na verdade o deus do submundo, Plutão. Eurídice vai parar no inferno e Orfeu pretende trazê-la de volta com o poder de sua música. Plutão, ciente do orgulho e da vaidade de Orfeu, finge sensibilizar-se, mas impõe-lhe como condição para levar Eurídice de volta que ele não olhe pra ela até deixarem o inferno. Sua intenção sádica se concretiza por fim, quando Orfeu não consegue evitar a visão de sua amada, fazendo com que ela fique presa no inferno por toda a eternidade.

Desde a criação da ópera, no início do século XVII, o mito de Orfeu recebeu centenas de montagens diferentes, levando-se em conta apenas os compositores e libretistas que se dedicaram a tal tarefa. Se pensarmos apenas nas obras mais importantes desse universo, tais como as óperas L’Orfeo de Monteverdi e Orphée et Eurydice de Gluck, devemos ter em mente que cada vez que uma delas é apresentada, entram em jogo interpretações pessoais diversas, que envolvem além dos solistas, coro, regente e orquestra, o diretor geral, cenógrafo, figurinista e iluminador, cada um deles responsável por um aspecto vital da performance.

A ópera é um gênero que atravessou quatro séculos e continua vivo, mesmo na era do cinema, por causa da possibilidade que abre de se contar histórias valendo-se da música como principal condutora dos sentimentos das personagens da trama. E quando a trama envolve a mitologia antiga, a obra se reveste de uma aura clássica, de uma atmosfera de solene reverência, como se os antigos soubessem melhor como falar de sentimentos, pois eram deuses e humanos ao mesmo tempo. Através das árias assistimos desfilar o amor e o desespero, a bondade e a crueldade, inveja, orgulho, paixão... Virtudes e defeitos que parecem em estado puro, como se tivessem sido originalmente criados pelos mitos, como se aquelas histórias fossem a fonte primordial das alegrias e dores humanas.

Para contar essas histórias hoje em dia, há quem as ambiente completamente no passado, criando cenários e figurinos de época, mas há também montagens pós-modernas, que exploram formas geométricas, tonalidades de cor, cenários e figurinos que parecem saídos de filmes de ficção científica. Mesmo assim, a música e a história permanecem fiéis ao original, como no caso de Monteverdi e Gluck.

O compositor Jacques Offenbach, porém, imaginou e concretizou um Orfeu completamente diferente. Sua opereta Orphée aux enfers, de 1858, é uma sátira que subverte as expectativas e os valores associados aos personagens principais. Em sua visão, Orfeu e Eurídice são casados, odeiam-se mutuamente e possuem amantes. Em vez de encantar, a música de Orfeu causa calafrios na esposa. Ambientada na França do século XIX, a obra inclui também passagens no Olimpo, trazendo os deuses gregos para a mesma época da trama. Orfeu só vai ao inferno pela esposa por pressão da opinião pública, que na opereta é personificada por uma mulher. Ao fim de tudo, ficam felizes por estarem separados, por obra dos deuses.

A música de Offenbach é rica e inventiva e funciona extremamente bem para as cenas que ajuda a retratar. A obra como um todo torna-se vivamente interessante para quem está familiarizado com o mito original e com as montagens tradicionais, pois o compositor cria sutilezas e citações que só assim são perceptíveis. A opereta ajuda a dessacralizar o mito e cria uma forma divertida de encarar a intertextualidade. Os deuses continuam invejosos e sádicos, perversos e orgulhosos, mas agora podem nos fazer rir ao invés de nos fazer pagar o preço de tê-los criado impregnados de humanidade.

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