Mostrando postagens com marcador resenha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador resenha. Mostrar todas as postagens

sábado, 4 de setembro de 2010

Fantasia de prateleira

Desde que me entendo por gente adoro uma boa história de ficção, carregada de personagens e cenários que só podem mesmo existir na imaginação. A possibilidade de dar vida a toda essa fantasia, seja em páginas ou na tela, torna menos severa a concretude do mundo e nos permite experimentar um sonho lúcido no qual virtualmente tudo pode acontecer.

Essa inclinação para a ficção, somada ao alarido que ecoava por todo lado, acabaram atraindo minha atenção para um certo seriado de tv, de nome curto e enigmático: LOST.

A curiosidade foi finalmente saciada quando um amigo me emprestou os dvds das duas primeiras temporadas, que devorei em cerca de 3 dias. Pude então compreender a razão de tanto entusiasmo: a série possuía alguns ótimos ingredientes.

O enredo é basicamente o seguinte: um grupo de cerca de 40 pessoas é misteriosamente atraído para o mesmo voo, e o avião acaba caindo numa ilha isolada. Enquanto se recuperam do acidente e vão explorando os arredores, não demoram a perceber três coisas: que não seriam resgatados a curto prazo (estavam perdidos), que não estavam sozinhos e que a ilha era uma enorme caixa de surpresas. Até aí nada de tão extraordinário. Na verdade tudo isso é bastante clichê e já serviu de base para inúmeros filmes, de aventuras baratas a mega produções, incluindo romances, terror, fugitivos, dinossauros e alienígenas.

O que fez das primeiras temporadas de Lost um sucesso tão grande foi a teia de enigmas, construída de modo a prender a atenção, uma vez que certos mistérios iam sendo solucionados à medida em que outros eram constantemente introduzidos. Esse ingrediente, porém, não sustentaria o interesse se não fosse pelo carisma dos diversos personagens. Enquanto iam interagindo entre si, a história da vida de cada um até o momento do acidente era contada nos episódios, aumentando a familiaridade do espectador e criando condições para a catarse, tão importante para o drama.

Ao final da terceira temporada, eu já fazia parte da massa de seguidores, sempre ávidos pelo próximo episódio. Baixava-os um dia depois de irem ao ar no exterior, formulava teorias sobre os enigmas em conversas e acompanhava as atualizações e discussões pela internet.

A este ponto o seriado já havia adquirido uma enorme popularidade em boa parte do mundo e, infelizmente, fenômenos assim não ficam imunes às pressões e tentações capitalistas. O frenesi da fama trouxe consigo o famigerado alongamento da história, com a sintomática inclusão de novos e descontextualizados personagens. A narrativa passou a incorporar deslocamentos temporais e realidades paralelas que fragmentavam a compreensão mais do que renovavam o interesse. A coerência começava a ser preterida em nome da manutenção da audiência, de modo que passei a temer pelo desfecho da história. Mesmo assim continuei firme até o final da sexta e última temporada, na expectativa de ver solucionadas pelo menos algumas dúvidas centrais para o entendimento de toda a série.

Os criadores haviam inserido mais elementos do que podiam controlar. O sonho lúcido aos poucos transformava-se no pesadelo da maioria dos entusiastas, que anteviam a gigantesca frustração iminente.

Após seis anos, a história é enfim concluída de modo simplório e conciliatório, no qual a falta de originalidade por si só já frustraria o espectador que por tanto tempo foi levado a desenvolver sua imaginação e sua capacidade de síntese. Privilegiou-se o processo, em detrimento do desfecho. O processo de manter em alta a expectativa, que por sua vez sustentava a audiência, foi o mais importante. Certamente arrecadaram milhões e criaram novos astros para o mercado, mas desperdiçaram a oportunidade de deixar uma obra artística de valor.

Em meio à crise de identidade, à profusão de estímulos e à superficialidade das informações que imperam em nosso tempo, Lost poderia ter sido muito mais do que mais um produto nas prateleiras. Um produto que hoje não recomendo a meus amigos.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Orfeu às avessas

Sempre achei por demais curiosa a construção dos deuses pelos antigos, particularmente os gregos. Por um lado poderosos e imponentes em sua elevada posição, por outro, contaminados com uma humanidade que os fragiliza, vitimiza e muitas vezes os expõe ao ridículo. Senhores dos destinos de homens e mulheres, não conseguem lidar bem com suas próprias idiossincrasias e limitações, condição essa imposta como uma espécie de compensação mitológica. Submetidos a uma hierarquia familiar, são movidos por um insaciável desejo de vingança, que recai sobre seus divinos pares e também acaba sobrando, logicamente, para os pobres mortais. Os deuses gregos são sádicos, invejosos e perversos, características muito mais evidentes do que a suposta nobreza heróica de seus postos.

Curiosa é também a perpetuação desses mitos como temas artísticos até os tempos mais recentes. Tomemos o mito de Orfeu como exemplo. Filho mortal de Apolo, Orfeu representa o dom da música. Com sua voz e sua lira é capaz de deleitar e convencer quem quer que seja, desde pássaros até monstros. Eis que outro filho de Apolo, Aristeu, resolve tomar-lhe a amada Eurídice à força. Fugindo das investidas de Aristeu ela é mortalmente picada por uma cobra, na verdade o deus do submundo, Plutão. Eurídice vai parar no inferno e Orfeu pretende trazê-la de volta com o poder de sua música. Plutão, ciente do orgulho e da vaidade de Orfeu, finge sensibilizar-se, mas impõe-lhe como condição para levar Eurídice de volta que ele não olhe pra ela até deixarem o inferno. Sua intenção sádica se concretiza por fim, quando Orfeu não consegue evitar a visão de sua amada, fazendo com que ela fique presa no inferno por toda a eternidade.

Desde a criação da ópera, no início do século XVII, o mito de Orfeu recebeu centenas de montagens diferentes, levando-se em conta apenas os compositores e libretistas que se dedicaram a tal tarefa. Se pensarmos apenas nas obras mais importantes desse universo, tais como as óperas L’Orfeo de Monteverdi e Orphée et Eurydice de Gluck, devemos ter em mente que cada vez que uma delas é apresentada, entram em jogo interpretações pessoais diversas, que envolvem além dos solistas, coro, regente e orquestra, o diretor geral, cenógrafo, figurinista e iluminador, cada um deles responsável por um aspecto vital da performance.

A ópera é um gênero que atravessou quatro séculos e continua vivo, mesmo na era do cinema, por causa da possibilidade que abre de se contar histórias valendo-se da música como principal condutora dos sentimentos das personagens da trama. E quando a trama envolve a mitologia antiga, a obra se reveste de uma aura clássica, de uma atmosfera de solene reverência, como se os antigos soubessem melhor como falar de sentimentos, pois eram deuses e humanos ao mesmo tempo. Através das árias assistimos desfilar o amor e o desespero, a bondade e a crueldade, inveja, orgulho, paixão... Virtudes e defeitos que parecem em estado puro, como se tivessem sido originalmente criados pelos mitos, como se aquelas histórias fossem a fonte primordial das alegrias e dores humanas.

Para contar essas histórias hoje em dia, há quem as ambiente completamente no passado, criando cenários e figurinos de época, mas há também montagens pós-modernas, que exploram formas geométricas, tonalidades de cor, cenários e figurinos que parecem saídos de filmes de ficção científica. Mesmo assim, a música e a história permanecem fiéis ao original, como no caso de Monteverdi e Gluck.

O compositor Jacques Offenbach, porém, imaginou e concretizou um Orfeu completamente diferente. Sua opereta Orphée aux enfers, de 1858, é uma sátira que subverte as expectativas e os valores associados aos personagens principais. Em sua visão, Orfeu e Eurídice são casados, odeiam-se mutuamente e possuem amantes. Em vez de encantar, a música de Orfeu causa calafrios na esposa. Ambientada na França do século XIX, a obra inclui também passagens no Olimpo, trazendo os deuses gregos para a mesma época da trama. Orfeu só vai ao inferno pela esposa por pressão da opinião pública, que na opereta é personificada por uma mulher. Ao fim de tudo, ficam felizes por estarem separados, por obra dos deuses.

A música de Offenbach é rica e inventiva e funciona extremamente bem para as cenas que ajuda a retratar. A obra como um todo torna-se vivamente interessante para quem está familiarizado com o mito original e com as montagens tradicionais, pois o compositor cria sutilezas e citações que só assim são perceptíveis. A opereta ajuda a dessacralizar o mito e cria uma forma divertida de encarar a intertextualidade. Os deuses continuam invejosos e sádicos, perversos e orgulhosos, mas agora podem nos fazer rir ao invés de nos fazer pagar o preço de tê-los criado impregnados de humanidade.